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CORES.2


Era um mundo feito de sombras, onde as formas se misturavam e os contornos se desfaziam, como se a própria luz tivesse sido diluída, como uma tela borrada. Não havia espaço para cores vivas, apenas uma fraqueza que se arrastava pelo dia, onde o tempo era um espectador indiferente de tudo o que acontecia. Cada momento parecia se perder antes de se concretizar, e as ruas, as casas, as árvores – todos pareciam parte de um quadro inacabado, algo que nunca seria terminado.

De repente, algo mudou, um toque suave, quase imperceptível, de algo que não se podia nomear. Foi como se o mundo, tão sombrio e quieto, tivesse hesitado por um instante, como se algo estivesse finalmente prestes a acontecer.

Primeiro, surgiu o verde. Não um verde comum, mas uma luz que parecia vibrar, uma energia pulsante que percorreu as folhas das árvores. As sombras ao redor, antes tão dominantes, começaram a ceder lugar a esse tom inesperado. Não era o verde das plantas, nem o verde do campo. Era um verde novo, fresco, algo que não se via há muito tempo. Ele surgiu suavemente, como um sussurro, tocando cada ramo, cada pedaço de grama, como se estivesse acordando a terra de um sono profundo.

Então, o azul apareceu. Não foi uma explosão, mas uma presença sutil, que aos poucos se espalhou pelo horizonte. O céu, antes cinzento, começou a se intensificar, suas camadas de azul se desdobrando de forma delicada. Cada nuance parecia se expandir, como se a própria imensidão do espaço estivesse se revelando. O azul não se limitava ao céu, mas estava em cada superfície, nas fachadas das casas, nas janelas, nas pequenas frestas de luz, nas poças de água na rua. Era profundo e vasto, como um oceano que se estendia por todo o mundo.

E, logo após o azul, o vermelho se fez presente. De maneira quase inesperada, o vermelho surgiu com um brilho quente, chamando atenção, mas sem ser invasivo. Ele se espalhou pelas flores, pelos pequenos detalhes que antes passavam despercebidos. Era um vermelho intenso, um sinal de vida que antes parecia ausente. Não era a cor do fogo, nem a do sangue. Era a cor da paixão, da ação, da urgência que, até então, ninguém sabia que estava ali, aguardando para ser vista.

À medida que o tempo passava, mais cores apareciam. O amarelo surgiu, tímido, como uma luz suave que tocava os cantos das paredes e os rostos das pessoas. Era uma cor alegre, mas não exuberante, como um sorriso que se desenha lentamente. Ela parecia iluminar tudo ao seu redor, revelando detalhes que antes passavam despercebidos, tornando o mundo mais caloroso e acolhedor, aquecendo o ambiente, trazendo uma paz que parecia antiga, como se a própria essência da vida tivesse se mostrado em sua forma mais pura.

As cores tomavam conta, o mundo se transformava. Não era uma mudança repentina, mas gradual, como se a própria natureza estivesse revelando aos poucos aquilo que sempre esteve ali, aguardando para ser descoberto. O mundo, antes de sombras, sem vida e sem cor, agora parecia vibrar com uma energia nova, como se cada cor fosse uma batida do coração de algo maior, algo que havia esperado pacientemente pelo momento certo.

E então, a compreensão veio, sutil, quase sem ser notada: as cores não eram meramente elementos do mundo. Elas eram uma forma de expressão, uma linguagem que trazia consigo algo profundo. Elas não estavam apenas preenchendo o espaço; estavam comunicando algo. Como se, no momento em que as cores começaram a aparecer, o mundo tivesse finalmente encontrado o que faltava. O cinza desapareceu e o mundo, antes incompleto, agora estava vivo, a cor encontrou o mundo – e, ao encontrá-la, revelou o que ele sempre foi, escondido nas sombras, esperando o momento certo para ser visto.

Para o mundo que conhecia apenas a monotonia do cinza, não soube como lidar com a explosão de tons e luzes que agora moldavam a realidade. As cores eram imprevisíveis, intensas demais para olhos acostumados à penumbra. A realidade se encolheu, tentando se esconder da transformação que avançava sem hesitação, o mundo fechava os olhos mesmo sem entender o motivo da falta de aceitação de algo que parecia tão incrível.

Foi então que ela apareceu.

Ninguém sabia de onde vinha, nem como atravessara o limiar entre as sombras e as cores. Diferente de tudo ao redor, não era feita de sombras nem de luz, mas de algo entre os dois. Seu corpo refletia todas as cores recém-nascidas, como se ela mesma fosse parte daquele milagre que se desenrolava diante do mundo.

Ela caminhava pelas ruas sem medo, e onde seus pés tocavam, pequenas faíscas de cor brotavam. Seus olhos, profundos e serenos, não julgavam o medo de quem ainda se agarrava ao vazio. Com um sorriso calmo, ela se aproximou, o mundo mesmo que mesmo assustado, não conseguia desviar o olhar das cores.

— Você sente, não sente? — sussurrou. — As cores te chamam. Não é o fim do que conhecemos. É o começo.

— Por que eu? Por que isso agora?

Ela sorriu, como quem já sabia a resposta.

— Porque você ainda lembra como é desejar ver o mundo de verdade. E porque o universo escolhe aqueles que ainda conseguem sonhar, mesmo quando tudo parece perdido.

Ela estendeu a mão. Um convite. Um desafio.

O mundo hesitou, mas algo — talvez o último resquício de esperança — o fez segurar a mão dela.

No instante em que o fez, o mundo tremeu.

O chão sob seus pés se abriu e, juntos, eles caíram. Não foi uma queda comum, mas uma descida lenta, como se atravessassem véus invisíveis. À medida que desciam, o mundo viu fragmentos de lembranças — dele, dos outros, do próprio universo — memórias soterradas pelo cinza. Risos de crianças, o dourado de um entardecer, o azul profundo de um mar há muito esquecido.

E então, tocou - se solo nunca antes tocado pelo mundo: o Reino onde a luz se desdobra —onde as cores nasciam, mas também onde se perdiam.

O Reino era um lugar belo e traiçoeiro, onde cada cor tinha vontade própria, e nem todas eram amigáveis. À medida que o mundo avançava, percebeu que a jornada não seria apenas sobre aceitar as cores, mas entender o que cada uma delas carregava.

O primeiro teste veio com o próprio cinza, dessa vez como uma criatura moldada por um escuro quase preto. Ele sussurrava dúvidas e medos, mostrando visões de um futuro em que as cores se apagariam e a dor da perda seria maior do que o vazio do cinza. Era a personificação da nostalgia, do medo de que a beleza fosse dolorosa demais para valer a pena. O mundo quase cedeu. Mas, ao lembrar do toque dele, da primeira faísca de verde que surgiu, seguiu em frente.

Foi então, que pela primeira vez o mundo conheceu a Aurora, filha das primeiras luzes, acompanhou o mundo, vibrante e impaciente, mostrando-lhe que o medo era um veneno que enfraquecia a cor. Com ela, vieram também O Pintor de Sombras, um ser que aprendera a conviver com o cinza e as cores, ensinando que até as sombras possuem beleza e propósito.

Durante o caminho, as sombras criaram formas e rostos, tentando seduzir o mundo de volta ao conforto do esquecimento. Sussurravam sobre a paz de não sentir, de não desejar, de apenas existir. Queriam provar que o mundo era frágil demais para suportar o peso das cores.

Cada passo à frente era um desafio entre se render à segurança do que já se conhecia e a coragem de seguir para o novo — e o mundo, com medo em um conflito interno, entre resistir à mudança ou abraçá-la.

Ao final da travessia, Aurora parou diante de um beco. No horizonte, uma fenda escura rasgava o céu e a terra. O lugar onde as cores nasciam e morriam, onde o primeiro cinza se originara, e onde tudo poderia ser esquecido novamente.

— É aqui — sussurrou Aurora. — A fonte de tudo... e o lugar onde o mundo deve escolher se deseja mesmo continuar.

O lugar respirava. Dele, saia uma névoa densa, feita de todas as cores e de nenhuma. Dentro, a promessa da verdade final: ali estava o núcleo do medo, a raiz da recusa, o lugar onde as cores eram julgadas indignas de existir.

O mundo hesitou. Sabia que, ao entrar, não haveria garantias de sair. Era a última fronteira — atravessar a caverna significava enfrentar o que estava escondido não no espaço, mas dentro de si mesmo: a dúvida sobre merecer, de fato, a beleza que encontrara.

O lugar não lhe daria resposta, mas mostraria o que o mundo já sabe, mas tem medo de aceitar.

Com o peito pesado, mas os olhos agora tingidos de todos os tons que conhecera, o mundo respirou fundo e deu o primeiro passo para dentro da escuridão.

Com medo, o mundo tentou então apagar as cores, cobri-las com sombras, restaurar a familiaridade do vazio. O cinza, que antes dominava, tentou retomar seu espaço, espalhando-se como névoa, sufocando as cores recém-chegadas. Ele avançou como uma maré fria, tentando engolir o brilho, se infiltrando nas folhas que haviam se tingido de verde, nas fachadas que haviam abraçado o azul, nas flores que haviam encontrado o vermelho. O verde se aprofundava no solo, enraizando-se mais fundo, o azul corria pelo céu, escapando do alcance do vazio, o vermelho ardia como fogo, e o amarelo brilhava nos cantos esquecidos, onde a sombra não conseguia mais alcançar.

A batalha era silenciosa. O mundo hesitava entre o conforto do que sempre conheceu e a inquietação do novo. A escuridão sussurrava que a cor era passageira, uma ilusão frágil que se dissolveria com o tempo, enquanto uma névoa permeiam ofuscando as cores ali presentes, lutando quietamente contra sua vibração. Mas, a cada dia, uma folha se mantinha verde, uma flor se recusava a desbotar, um traço de azul se destaca no céu.

Por mais que parecia estar voltando ao normal, algo havia mudado. O mundo havia conhecido a cor, a luz, e todas suas sensações, e, por mais que tentasse voltar ao que era, não podia negar o que havia visto. Então, o próprio cinza começou a se transformar, e tornou-se incapaz de governar sozinho, sua força já não era absoluta, agora, havia rachaduras em sua escuridão. Pequenos fragmentos de cor resistiam, e recusavam-se a serem apagados. Assim, o vazio, ao invés de se dissolver completamente, encontrou um novo papel, o que era sombrio, tornou-se contraste, moldura, profundidade, ele não desapareceu, mas aceitou sua convivência com a cor.

Agora, na jornada de saída do Reino, com a aceitação da cor como parte da existência, o mundo começou a se reconstruir. Não era uma restauração ao que era antes, mas uma nova forma de ser. O cinza, antes absoluto, agora servia de contraste, permitindo que as cores brilhassem com ainda mais intensidade. A luz e a sombra, em equilíbrio, desenhavam contornos nunca antes vistos, e o que antes parecia um quadro inacabado finalmente começava a ganhar forma.

O tempo, que antes se arrastava com indiferença, agora participava ativamente, registrando cada momento com clareza. O mundo não era mais estático; ele respirava, se movia, pulsava com a vida recém-descoberta. Seus olhos antes desacostumados passaram a enxergar detalhes sutis, como o brilho do orvalho nas folhas, o reflexo do sol nas poças d'água, o movimento das nuvens que dançavam no céu colorido.

O medo que acompanhava o desconhecido deu lugar à curiosidade. O desejo de explorar cresceu, e com ele, a coragem de mudar. O que era antes preso na monotonia, começou a criar, a construir e a imaginar possibilidades que nunca haviam sido cogitadas. Os edifícios cinzentos ganharam murais coloridos, as roupas se tornaram vibrantes, as vozes antes apagadas agora ressoavam em risos e canções. A própria atmosfera parecia diferente, como se o ar estivesse mais leve, carregado de novas promessas. O mundo havia sido transformado.

Certas partes ainda ansiavam pela segurança do mundo sombrio e previsível. Para esses, as cores eram um lembrete do que haviam perdido, um convite ao desconhecido que ainda temiam. No entanto, com o tempo, até mesmo os mais resistentes perceberam que a mudança não significava perda, mas sim crescimento.

De volta onde tudo começou, o mundo, que um dia fora apenas sombras, agora se via renascido. Ele havia enfrentado a escuridão, experimentado a luz e descoberto que seu verdadeiro potencial estava na união de ambos. Não havia mais necessidade de apagar um para que o outro existisse. O equilíbrio entre a sombra e a cor, entre o antigo e o novo, era o que tornava tudo completo.