
Paris is Burning!!
Uma Resenha Critica do documentário.
Direção: Jennie Livingston | EUA, 1990
O documentário Paris is Burning, dirigido por Jennie Livingston, se torna relevante na história do cinema documental por trazer à tona, com sensibilidade e impacto visual, a cultura dos bailes LGBTQIA+ nova-iorquinos na década de 1980. Por meio de registros observacionais, entrevistas e performances, a obra aprofunda em uma comunidade marginalizada composta, em sua maioria, por pessoas negras e latinas, travestis, mulheres trans e homens gays.
Segundo Nichols (2010), os documentários podem ser compreendidos através de diferentes modos de representação e Paris is Burning articula especialmente os modos observacional, expositivo e performático. A câmera se posiciona, na maior parte do tempo, como uma testemunha silenciosa, o que remete ao modo observacional, na qual a diretora permanece fora de quadro, permitindo que as personagens expressem suas vozes e experiências sem narração explícita. Tal escolha acentua a sensação de autenticidade, uma vez que não há mediação direta ou crítica manipulada sobre as estruturas sociais que marginalizam essas vidas.
Ao mesmo tempo, o filme utiliza intertítulos e uma edição estruturada em blocos temáticos como “legendary”, “mother”, “Ball” que introduzem e organizam o conteúdo, assumindo uma dimensão expositiva. Já o modo performático se expressa na forma como as personagens constroem suas identidades diante da câmera, transformando os bailes em palcos não apenas de dança, mas de uma política do corpo, onde se encena e se afirma o direito de existir.
A história apresentada em Paris is Burning é construída a partir das vozes e experiências de pessoas negras, latinas, e LGBTQIA+, que encontraram nos bailes um espaço de expressão, pertencimento e reinvenção identitária. Personagens como Dorian Corey, Pepper LaBeija, Angie Xtravaganza e Willi Ninja revelam, por meio de depoimentos francos e cenas de bastidores, como esses eventos funcionavam não apenas como festas, mas como arenas de afirmação simbólica e política. Em um contexto de exclusão sistêmica, seja por causa da sexualidade, da identidade de gênero, da cor da pele ou da condição econômica, os bailes ofereciam uma possibilidade de “ser alguém”, ainda que por uma noite, diante de um mundo que sistematicamente lhes negava reconhecimento.
O documentário mostra que os balls não eram apenas sobre moda, dança ou competição e sim o desejo de parecer e ser respeitado como aquilo que o mundo dizia que aquelas pessoas nunca seriam. Cada categoria desfilada expunha uma crítica encenada ao sistema que lhes negava acesso à cidadania plena. Para muitos dos participantes, os bailes representam um refúgio e um sonho de escapar da marginalização e conquistar uma existência “normal”. No entanto, como o documentário revela de forma dolorosa, esse sonho era também atravessado pela violência, pela pobreza e pela constante ameaça à sobrevivência. A cultura dos bailes, assim, emerge como um gesto de resistência coletiva, criativo e radical, capaz de transformar a dor em arte e a exclusão em espetáculo
Algo interessante que se percebe no documentário é a performance de gênero e classe apresentada nas categorias dos bailes, como Realness ou Schoolgirl Realness, reforçando a ideia de que gênero é um ato performativo, no qual as participantes do documentário encenam o que não podem ser socialmente (brancos, ricos, heteronormativos) de maneira exagerada e autêntica a suas realidades percebidas, produzindo essas fissuras simbólicas no sistema que os exclui. Neste sentido, documentários do modo performático revelam não só o "real" observado, mas também o sujeito que se revela ao atuar diante dos eventos e gravações.
Nesse ponto, destaca-se a figura de Venus Xtravaganza, mulher trans latina americana que expressa seu desejo por uma vida melhor e seu sonho de ser modelo, no qual a revelação de seu assassinato ao final do filme marca a tensão entre sonho e violência estrutural. Trata-se de um momento que o documentário deixa de ser apenas espetáculo e passa a confrontar o espectador de forma mais profunda com a tragédia e a desigualdade muito real.
No entanto, a obra não escapa das contradições de classe e raça que ela mesma denuncia. Livingston é uma cineasta branca, de classe média, filmando uma cultura queer popularizada pela comunidade negra e latina. A autora Bell Hooks em seu livros “Black Look - Race and Representation” critica duramente essa dinâmica, chamando atenção para o que ela define como consumo do outro, um processo no qual indivíduos brancos consomem as imagens, experiências e expressividades de sujeitos racializados, muitas vezes sem devolver poder, recursos ou voz a essas comunidades.
Para hooks, Paris is Burning exemplifica o que ela denomina colonização do olhar, no qual a diretora se apropria da estética, da linguagem e da dor dessas comunidades para produzir uma obra sensível e instigante, mas voltada majoritariamente a um público branco e liberal, que consome aquelas experiências como exóticas, autênticas ou subversivas, sem necessariamente se comprometer com a luta política que elas representam. De acordo com a autora, o filme não necessariamente questiona a responsabilidade de pessoas branca nos problemas que ele evidencia, logo, se tornando mais legitimador para o público branco.
Tal lógica de apropriação muitas vezes ocorre sob o disfarce do olhar empático, que se diz solidário, mas mantém intactas as hierarquias raciais e de classe. Dessa forma, mesmo que Paris is Burning ofereça uma plataforma para corpos historicamente silenciados, Bell Hooks nos convida a uma importante reflexão sobre quem tem o poder de contar histórias, quem se beneficia com isso, e quem continua à margem mesmo dentro das representações culturais mais progressistas.
Todo documentário carrega um “contrato de risco” no qual mostrar o real implica em assumir responsabilidade pelas imagens produzidas e por sua circulação. Paris is Burning transita entre o gesto de dar visibilidade e o risco de transformar a dor em consumo estético.
A obra continua fundamental para os estudos de gênero, raça, classe e representação midiática. Por meio de uma abordagem híbrida de modos documentais, o filme revela subjetividades múltiplas e resistentes, ao mesmo tempo em que nos confronta com os limites éticos da própria prática documental. Ao explorar um universo invisibilizado por décadas, a obra cumpre papel histórico e político. Entretanto, como bem apontam Nichols e Comolli, cabe ao espectador e à crítica problematizar as relações de poder que operam por trás das câmeras, sem as quais o "real" capturado corre o risco de ser, ele próprio, manipulado.
Postar um comentário