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Hierarquias Invisíveis: Feminilidade, Corpo e Poder


Marcadores sociais são eixos articulados que organizam a sociedade. Eles não são “características naturais”, mas construções históricas que organizam a sociedade e o acesso a prestígio, recursos e pertencimento.
Em outras palavras: não é só “quem você é”, mas como a sociedade te vê

Rg Social

O corpo, enquanto território e construção social/cultural, comunica significados antes mesmo da emissão de qualquer palavra. Ele transmite sinais, conscientes ou não, relacionados a marcadores sociais que influenciam diretamente a forma como indivíduos são percebidos, aceitos ou valorizados em diferentes contextos. As diferenças não derivam de características biológicas em si, mas dos significados atribuídos a elas pela sociedade. Por exemplo, a cor da pele só se transforma em “raça” quando a sociedade a usa como critério de classificação que define direitos, oportunidades e tratamento social.

A experiência social é atravessada por múltiplos eixos de identidade que se sobrepõem e se reforçam mutuamente. No Brasil, raça, gênero, classe e sexualidade não operam como categorias isoladas, mas como camadas que moldam a forma como corpos são percebidos, valorizados ou marginalizados. Ao pensar em estética, essas diferentes identidades se tornam especialmente visíveis, pois o “valor social” de um corpo raramente se separa das hierarquias históricas que determinam quem pode ser visto como legítimo.

A estética, mais do que um campo de preferências individuais, atua como dispositivo de poder que define limites de pertencimento. Padrões de beleza não surgem do acaso, existe uma manutenção histórica de estruturas de dominação que operam para excluir aqueles cujos corpos não se enquadram no ideal construído.

Um exemplo disso, é que embora o discurso da diversidade seja bandeira central no movimento LGBTQIAPN+, as hierarquias estéticas também operam internamente. Modelos de masculinidade e feminilidade, moldados por estereótipos heteronormativos, continuam a definir quem é mais valorizado e quem é invisibilizado.

O corpo padrão, geralmente magro, jovem, branco, sem deficiência e dentro de um ideal estético, é geralmente a base do que vemos da comunidade na maneira em que é representada no território midiático (filmes, séries, campanhas, etc) enquanto corpos dissidentes são tratados de forma em que devem ser “tolerados” e “aceitos” nos mesmos ambientes midiáticos e ainda muitas vezes caindo em estereótipos. Da mesma forma, a diferença, quando não é apagada, é frequentemente fetichizada. A diversidade se transforma em produto, reduzindo identidades a estéticas consumíveis, mantendo as estruturas que geram desigualdade.

Feminilidade

A feminilidade é um conjunto de características, comportamentos, expressões e valores culturalmente associados ao que se considera “ser mulher” em determinada sociedade. Ela não é um traço biológico fixo, mas sim uma construção social e histórica, moldada por normas de gênero, tradições culturais, religião, mídia e padrões estéticos. Elementos como delicadeza, cuidado, sensibilidade, vaidade, postura “adequada”, gestos suaves e até a forma de se vestir costumam ser associados à feminilidade, embora tais atributos não sejam naturalmente ligados ao sexo feminino e qualquer pessoa, independentemente de gênero, pode expressá-los.

É importante destacar que a feminilidade não é universal: o que é visto como “feminino” varia conforme a época, o lugar e o contexto cultural. Enquanto em alguns períodos históricos a feminilidade esteve ligada à discrição e ao recato, em outros passou a incorporar traços de independência e liberdade. Ainda assim, ela carrega um peso simbólico, pois muitas vezes é utilizada como ferramenta de controle social, delimitando comportamentos “aceitáveis” para mulheres.

De forma geral, principalmente em regiões que seguem o modelo eurocêntrico de pensamento, a feminilidade é um fator frequentemente visto como fraqueza ou futilidade. Mulheres que abraçam a feminilidade, seja por meio da aparência, da postura ou da forma de se expressar, muitas vezes enfrentam estigmas na qual são associadas a estereótipos que as colocam como superficiais/submissas ou têm sua competência constantemente colocada em dúvida, como se a valorização de elementos considerados “femininos” fosse incompatível com inteligência, liderança ou autonomia. A feminilidade, apesar de ser socialmente exigida em diversos contextos, também é usada como instrumento de controle e desvalorização. Quando a mulher se distancia da feminilidade tradicional, é criticada por “não se comportar como mulher”; quando a adota, é deslegitimada e associada à fragilidade.

Quando um homem expressa feminilidade ou incorpora atributos culturalmente associados às mulheres, ele muitas vezes é visto como “menos homem” e sua masculinidade é colocada em pauta questionando até mesmo sua sexualidade. Essa reação não nasce de uma rejeição à estética em si, mas de uma lógica patriarcal que desvaloriza o feminino. Se a sociedade entende que ser mulher é estar em uma posição inferior, então qualquer aproximação a essa identidade é lida como perda de status e legitimidade. Nesse sentido, o preconceito contra homens femininos não é apenas uma questão de homofobia ou de imposição da masculinidade, mas também um reflexo direto da misoginia estrutural, pois, o que está sendo punido é a associação com o que é visto como “mulher”.

A Percepção do feminino

Dentro da comunidade LGBTQIAPN+ por exemplo, a feminilidade assume múltiplas camadas de significado e disputa. Em alguns contextos, há um fenômeno em que a feminilidade é incorporada de forma performática, exagerada e sexualizada, inspirada, por exemplo, em ícones pop, na estética drag ou em caricaturas midiáticas do “ser mulher”. Essa expressão pode ser uma estratégia de resistência, de humor ou de pertencimento cultural, mas também pode se aproximar de um fetichismo, na qual faz a adoção de uma feminilidade que reduz o feminino a atributos eróticos ou estereotipados, desvinculados da complexidade e das vivências reais das mulheres.

Essa prática é recebida de maneira diferente dependendo de quem a produz. Quando um homem branco gay, por exemplo, assume essa performance hipersexualizada e feminina, apesar de assumir o risco da violência por estar quebrando normas da masculinidade (impostas por homens brancos), no cotidiano e na mídia, ainda é muitas vezes é visto como ousado, divertido e, em certos espaços, até admirado por sua coragem de desafiar o “normal”. No entanto, quando uma mulher, especialmente de etnia diferente, exibe uma feminilidade igualmente intensa, a leitura social tende a ser oposta, ela é frequentemente hipersexualizada contra a sua vontade, julgada como vulgar, menos respeitada e associada a estereótipos racistas e misóginos.

Essa discrepância revela uma hierarquia de poder e privilégio. O corpo masculino branco, por exemplo, mesmo quando adota signos femininos e desafia o dominante da masculinidade, ainda aproveita de certa proteção contra a opressão sistemática que recai sobre corpos femininos, sobretudo os racializados. Logo, a problemática não reside necessariamente em quem adota ou como performa a feminilidade, mas sim no olhar e nas estruturas sociais que a interpretam. O valor ou o julgamento atribuído a essa expressão é mediado por preconceitos de gênero, raça e classe, que definem quem “pode” explorar determinados códigos.