Reparar ou Adaptar? A Publicidade da Nestlé no Tempo da Responsabilidade Social
Texto Apresentado no COMUNICON 2025 - Congresso Internacional em Comunicação e Consumo
Introdução
Em um cenário em que consumidores estão cada vez mais atentos à coerência ética das marcas, mais do que vender produtos, a publicidade serve como vitrine simbólica de valores, narrativas e posicionamentos sociais cuidadosamente construídos.
A Nestlé, uma das maiores empresas do setor alimentício mundial, durante as décadas de 1970 e 1980, teve campanhas de promoção de fórmulas infantis em países não desenvolvidos, foram acusadas de práticas enganosas, contribuindo para desnutrição e mortes de bebês em contextos de pobreza (Muller, 2023). Décadas depois, a mesma marca aposta em campanhas inclusivas e emocionalmente engajadas, como a campanha do Dia das Mães de 2024, que valoriza a diversidade e a representatividade em moldes contemporâneos.
A escolha desse objeto se justifica pela relevância crescente das discussões sobre ética empresarial, responsabilidade social, e consumo de ativismo, além da urgência em entender como o consumo se entrelaça com valores simbólicos mediados pela publicidade, e se o reposicionamento é suficiente para reparar os mal feitos passados.
Este estudo adota uma abordagem qualitativa, com foco interpretativo e comparativo, voltada à compreensão das estratégias discursivas utilizadas pela Nestlé na construção simbólica de sua imagem institucional ao longo do tempo. A análise centra-se em dois momentos distintos, das ações de venda da década prévias a 1970, com base nas denúncias documentadas inicialmente por Muller em 1974, e a campanha “Mais Que Palavras, Amar é Um Gesto”, lançada em 2024 no contexto de celebração de 80 anos da marca NINHO.
1. Responsabilidade e consumo
Em uma sociedade marcada pelo hiperconsumo, o consumo deixa de ser apenas uma necessidade e torna-se um valor de distinção, um processo social (Pinto, Batinga, 2016). Nesse cenário, o ato de consumir passa a incorporar significados simbólicos e ideológicos, logo, pensar o consumo consciente implica refletir sobre o impacto das escolhas individuais em contextos sociais, culturais e ambientais mais amplos.
Embora o consumo consciente seja frequentemente defendido por empresas, governos e organizações da sociedade civil, ele é ainda tratado como um fim em si mesmo, descolado de uma estrutura crítica mais ampla (Pinto, Batinga, 2016). A proposta do consumo consciente muitas vezes assume um caráter pragmático e normativo, ao responsabilizar exclusivamente o consumidor pelos efeitos ambientais e sociais do consumo, ignorando as dinâmicas estruturais do capitalismo e da produção (Pinto, Batinga, 2016). Desse modo, o discurso do consumo consciente é apropriado pelo mercado, transformando-se em mais um produto a ser consumido, o que reforça as contradições de uma sociedade que estimula o consumo como base da cidadania e do pertencimento (Pinto, Batinga, 2016).
No entanto, a partir dessa nova onda de consciência, entende-se a sociedade atual localizada em uma era de responsabilidade, onde pessoas e marcas com grande influência estão sob o olhar constante de uma população (Pinto, Batinga, 2016) que pede cada vez mais por ações e atitudes que se alinham com seus valores pessoais, transformando a relação entre organizações e sociedade no contexto contemporâneo, impactando diretamente na imagem e comportamento da marca.
2 Construção de marca e posicionamento estratégico
A gestão estratégica de marcas constitui um importante campo do marketing moderno, voltado à criação, fortalecimento e manutenção do valor de uma marca ao longo do tempo. Por exemplo, conforme Keller (2006), uma marca pode demonstrar um conjunto de elementos tangíveis e intangíveis, como nome, logotipo, símbolos, narrativas e associações, que não apenas identificam produtos ou serviços, mas também os diferenciam no mercado, gerando vínculos emocionais e cognitivos com os consumidores. Ao diferenciar-se de um produto genérico, a marca incorpora dimensões simbólicas e de desempenho que moldam a percepção e influenciam a decisão de compra (Keller, 2006).
Neste sentido, a construção da imagem de marca é um processo estratégico que envolve o posicionamento adequado, a criação de associações fortes, favoráveis e únicas na memória do consumidor, e a comunicação consistente de sua identidade e valores (Keller, 2006). Segundo o modelo de Equidade de Marca Baseada no Cliente, defendido por Keller (2006) a força de uma marca deriva de como o consumidor a percebe e reage a suas ações.
No contexto contemporâneo, marcado pela digitalização, conectividade e participação ativa do consumidor, a gestão de marca adquire uma função social ainda mais forte. As marcas não apenas comunicam atributos de produtos, mas também se posicionam como símbolos culturais e agentes de relacionamento entre empresas e sociedade (Keller, 2006). Isso implica incorporar práticas que valorizem a autenticidade, a responsabilidade socioambiental e a participação em conversas sociais, reforçando o papel da marca como mediadora de valores e significados compartilhados.
Em cenários de desgaste reputacional, seja por falhas operacionais, polêmicas éticas ou mudanças abruptas no mercado, a publicidade funciona como dispositivo narrativo (Keller, 2006). Por meio de campanhas cuidadosamente elaboradas, as empresas buscam reconectar-se ao público, reforçando atributos positivos e promovendo novos significados. Essa estratégia integra-se ao processo de gestão estratégica da marca, em que a comunicação não apenas informa, mas também reconfigura a identidade e o posicionamento (Keller, 2006).
3 A marca Nestlé
A história da Nestlé, de acordo com o site oficial Nestlé.com.br, tem origem na Suíça, em meados do século XIX. Em 1866, a Anglo‑Swiss Condensed Milk Company inaugurou a primeira fábrica de leite condensado da Europa em Cham. No ano seguinte, o farmacêutico Henri Nestlé desenvolveu a Farinha Láctea, uma fórmula nutricional à base de leite, farinha de trigo e açúcar, destinada a reduzir a mortalidade infantil, marcando o início de uma trajetória pautada pela inovação e compromisso com a vida (Nestlé, [s.d.]).
Em 1905, a fusão da Nestlé com a Anglo‑Swiss consolidou a base da empresa moderna, a Nestlé & Anglo‑Swiss Milk Company, preparando seu crescimento global. Ao longo das décadas, a empresa expandiu seu portfólio além da nutrição infantil, passando a atuar em segmentos como café instantâneo (Nescafé), alimentos prontos e produtos farmacêuticos, sempre com foco em conveniência, qualidade e bem-estar (Nestlé, [s.d.]).
Hoje, a Nestlé é reconhecida como a maior empresa mundial de nutrição, saúde e bem‑estar, presente em cerca de 194 países e oferecendo um vasto portfólio de produtos e serviços (Nestlé, [s.d.]).
4 O matador de bebês
O escândalo Nestlé/Baby Killer teve início em 1974, com a publicação do relatório "The Baby Killer" pelo jornalista britânico Mike Muller, em parceria com a ONG War on Want. A denúncia apontava as práticas antiéticas da Nestlé e de outras multinacionais na promoção agressiva de fórmulas infantis como substituto do leite materno, especialmente em países em desenvolvimento, onde as condições sanitárias, socioeconômicas e de acesso à informação tornavam essa substituição extremamente perigosa para a saúde das crianças (Muller, 2023).
Segundo o relatório, empresas como a Nestlé distribuíam amostras grátis, usavam vendedoras vestidas como enfermeiras para transmitir credibilidade e convenciam mães pobres a abandonar a amamentação precoce (Muller, 2023), mesmo sendo o leite materno o alimento mais seguro, nutritivo e acessível para bebês. A prática resultava em desnutrição, infecções, doenças graves como diarreia e kwashiorkor, e até mortes infantis, configurando um grave problema de saúde pública nos países do chamado Terceiro Mundo (Muller, 2023).
O caso impulsionou boicotes globais e discussões em órgãos internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) (Baby Milk Action, 2025). O impacto das denúncias e da mobilização internacional culminou, em 1981, na adoção do Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno, aprovado pela Assembleia Mundial da Saúde. O Código restringe a propaganda de fórmulas infantis, proíbe a distribuição de amostras grátis, o uso de brindes promocionais e a presença de representantes comerciais em unidades de saúde, além de exigir rótulos informativos sobre os riscos da substituição do leite materno (World Health Organization, 1981).
Apesar das regulamentações, a aplicação do Código varia entre os países. No Brasil, a legislação incorporou suas diretrizes por meio da NBCAL – Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras, instituída pela Lei nº 11.265/2006.
Mas como isso acontece? Apesar do reconhecimento científico de que o leite materno é o alimento mais completo e seguro para bebês com menos de seis meses, segundo Muller (2023) muitas mães em países em desenvolvimento eram levadas a substituí-lo por fórmulas industrializadas. Essa transição, frequentemente induzida por estratégias de marketing agressivas, tem resultado em sérios impactos à saúde infantil, principalmente onde as condições sanitárias e o acesso à informação são limitados (Muller, 2023).
Entre os principais riscos associados ao uso indiscriminado de fórmulas estão a desnutrição e as infecções causadas pelo preparo inadequado, prática comum em contextos de pobreza extrema(Muller, 2023). A utilização de mamadeiras mal esterilizadas e a diluição excessiva do produto (motivada pela tentativa de economizar) aumentam as chances de infecções e reduzem a absorção de nutrientes, desencadeando quadros graves de desnutrição e doenças (Muller, 2023).
Enquanto em países com altos padrões de vida, como o Reino Unido, ainda se registram casos de infecção associados ao uso de mamadeiras, nas periferias urbanas da África, Ásia e América Latina, a ausência de infraestrutura básica transforma essas práticas em ameaças constantes à sobrevivência infantil (Muller, 2023). Nessas regiões, observa-se um ciclo no qual a criança adoecida pela infecção tem sua capacidade de absorver nutrientes reduzida, agravando o quadro de desnutrição, que por sua vez a torna ainda mais vulnerável a novas doenças (Muller, 2023).
A promoção das fórmulas, segundo denunciado por O Matador de Bebês (2023), envolve ações como a distribuição de amostras grátis, o uso de materiais publicitários com aparência científica e a atuação de vendedoras vestidas como profissionais de saúde. Tais práticas não apenas induzem o abandono precoce da amamentação, como também exploram a confiança das mães em instituições médicas e no discurso da modernidade (Muller, 2023).
4. Análise e metodologia
A presente pesquisa adota uma abordagem qualitativa e interpretativa, com foco na análise comparativa de campanhas publicitárias da Nestlé em diferentes contextos históricos e sociais, tendo como eixo central a forma como a marca representa a maternidade ao longo do tempo. Essa metodologia se justifica pela necessidade de compreender não apenas os conteúdos explícitos das campanhas, mas também seus sentidos simbólicos, estratégias discursivas e implicações socioculturais.
A investigação se apoia na análise documental e midiática, utilizando como objeto de estudo dois formatos de campanhas da Nestlé: as ações de marketing da década de 1970 voltadas à promoção de fórmulas infantis (com base na investigação de Mike Muller, em 1974), e a campanha institucional de 2024, “Mais Que Palavras, Amar é Um Gesto”, da marca NINHO.
O trabalho busca, portanto, problematizar a dimensão simbólica da comunicação corporativa e investigar se o atual reposicionamento discursivo da Nestlé configura uma reparação histórica ou uma adaptação estratégica às pressões de mercado. A comparação entre passado e presente permite evidenciar a disputa simbólica em torno da maternidade e a persistência de interesses corporativos que se reconfiguram sem, necessariamente, se responsabilizar por práticas anteriores.
Essa metodologia é adequada para revelar os mecanismos de construção de sentido na publicidade e os efeitos sociais e históricos dessa construção, especialmente quando se trata de grandes corporações que operam simultaneamente como agentes econômicos e produtores de narrativa no espaço público.
4.1 Confiança Fabricada e Fórmulas de Desinformação
A investigação publicada originalmente por Mike Muller, em 1974, revelou o uso sistemático de estratégias de marketing por grandes empresas, como a Nestlé, para promover a substituição do leite materno por fórmulas infantis, sobretudo em países do chamado Terceiro Mundo. Essas ações de venda e propaganda evidenciam um padrão estruturado que vai além da simples promoção comercial, afetando diretamente a saúde pública, as mulheres e a sobrevivência infantil.
Conforme a investigação relatada por Muller em 1974, as campanhas publicitárias voltadas à comercialização das fórmulas infantis se apoiavam fortemente em uma retórica científica. Rótulos e folhetos explicativos apresentavam uma linguagem técnica e tabelas nutricionais complexas, com o objetivo de criar a impressão de que os produtos eram cientificamente testados, equilibrados e ideais para a nutrição do bebê, no qual segundo entrevistas conduzidas por Muller (2023) apontam que tais instruções induzia a confusão das mães por muitas serem analfabetas.
Considerando isso, cartazes e panfletos distribuídos em hospitais e postos de saúde evidenciam uma das estratégias das marcas de alimentação como a Nestlé, pois era de conhecimento das limitações das mães nesses países. Logo quando se via essas peças em lugares de confiança torna-se subconscientemente algo de confiança, como a prática de utilizar mamadeiras (Muller, 2023). Assim, o apelo à ciência operava como um instrumento de convencimento que mascarava os riscos do uso indiscriminado do produto, sobretudo entre populações vulneráveis.
As companhias responsáveis pelas fórmulas recorrem ainda ao uso estratégico da linguagem médica e da estética de autoridade para consolidar a credibilidade de seus produtos. Um exemplo notório foi a atuação de “enfermeiras”, que visitavam maternidades, consultórios e clínicas de saúde, abordando mães diretamente com orientações que simulavam recomendações técnicas e profissionais. A Nestlé enviava também, na Malásia, por exemplo, enfermeiras para serviços domiciliares, no qual buscavam educar e apoiar as mães (Muller, 2023).
No entanto, a investigação aponta que empresas do setor contratavam mulheres sem formação em saúde, mas que atuavam vestidas como enfermeiras, a fim de transmitir credibilidade e simular aconselhamento nutricional (Muller, 2023). Tal prática explorava a autoridade simbólica associada ao uniforme e ao papel do profissional de saúde.
Além disso, mães que estavam amamentando de forma satisfatória eram incentivadas a introduzir fórmulas infantis por meio da mamadeira antes que houvesse qualquer justificativa clínica para a suplementação (Muller, 2023). Isso resultava no desmame precoce e desnecessário, colocando em risco a saúde e o desenvolvimento dos bebês.
De forma ainda mais preocupante, enfermeiras qualificadas eram frequentemente remuneradas com base em comissões atreladas ao volume de vendas, o que compromete seu compromisso ético com a educação em saúde (Muller, 2023). Essa remuneração por desempenho comercial distorcia a função educativa da enfermagem, transformando profissionais da saúde em agentes de marketing.
(Baby Milk Action - Boycott News 33, Summer 2003, 2025)
4.2 Mais Que Palavras, Amar é Um Gesto
A campanha publicitária “Mais Que Palavras, Amar é Um Gesto” marca os 80 anos da marca NINHO e foi criada pela Publicis Brasil em parceria com a Publicis Paris (Publicis,[s.d.]). Lançada em julho de 2024, a ação celebra gestos cotidianos como formas de expressar amor e conexão, deixando claro que o cuidado maternal vai além das palavras e está presente em pequenos atos diários de afeto (Publicis,[s.d.]).
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(Nestlé Brasil, 2024)
O discurso afetivo e sensível, destaca gestos íntimos e cotidianos, como proteger a cabeça de uma criança, compartilhar momentos ao redor da mesa ou aproveitar tempo juntos, como formas de demonstrar amor. O tom é de acolhimento e proximidade, convidando o espectador a refletir sobre o valor do cuidado mútuo no cotidiano familiar.
As peças utilizam diretamente marcadores sociais como raça, orientação sexual e deficiência (grupos marginalizados), demonstrando diversidade nas pessoas, e enfatizando o amor único. Ela se insere em uma nova geração de campanhas publicitárias que adotam uma lógica inclusiva mais sutil e emocionalmente abrangente. A peça opta por valorizar gestos universais de cuidado e formas de afeto reconhecíveis por todos, independentemente de sua configuração familiar ou origem social.
Essa escolha narrativa e estética configura um modelo de inclusão simbólica, no qual a empatia é promovida por meio da representação de ações que remetem ao cotidiano e à intimidade afetiva elementos presentes em todas as formas de maternidade. Ao exibir cenas que privilegiam o toque, o acolhimento, o olhar protetor e a presença constante, a campanha reconhece a pluralidade de experiências maternas sem recorrer a estereótipos visuais ou discursos marcadamente identitários.
Tal estratégia busca criar vínculos emocionais duradouros com o público por meio de valores compartilhados, como o amor, o cuidado e o pertencimento.
4.3 De Alvo a Protagonista
Nas décadas passadas, especialmente durante os anos 1970, grupos socialmente vulnerabilizados eram alvo de campanhas publicitárias abusivas, que exploravam sua condição de exclusão e falta de acesso à informação, resultando na morte de seus filhos (Muller, 2023). Essas populações foram retratadas não como sujeitos de direitos, mas como destinatárias passivas de produtos promovidos por meio de estratégias autoritárias e enganosas, como a imposição de fórmulas infantis sob a aparência de orientação médica.
Hoje, em um movimento de reconfiguração simbólica e estratégica, esses mesmos grupos foram reposicionados pela marca como protagonistas de campanhas afetivas, usadas para transmitir valores como empatia, diversidade e inclusão. No entanto, apesar do avanço simbólico, esse uso também serve aos interesses comerciais das empresas, que se beneficiam da valorização pública da representatividade como estratégia de construção de marca e fidelização afetiva (Keller, 2006, Pinto, Batinga, 2016).
Nos anos 1970, o marketing explorava a figura da mãe como alvo de convencimento técnico, e apagava sistematicamente os saberes tradicionais e comunitários sobre amamentação (Muller, 2023). A atual campanha faz o caminho oposto: apaga o discurso técnico e até evita a presença de produto no vídeo, focando apenas na experiência emocional. A figura materna, antes retratada como deficiente em conhecimento e dependente de instruções “científicas”, agora é reformulada como protagonista emocional. Ela aparece na campanha como segura, sensível e afetuosa, sem a interferência de especialistas ou prescrição externa, uma reformulação simbólica que devolve agência à mulher-mãe e ressignifica seu papel no centro da narrativa.
A própria relação entre mãe e marca é ressignificada. Enquanto antes o vínculo era estabelecido por meio de autoridade médica, caridade institucional e dependência técnica, (Muller, 2023) agora se constrói por meio de identificação afetiva e pertencimento simbólico. A marca se posiciona como alguém que “entende” a experiência da maternidade, não como alguém que dita regras sobre ela.
Se antes a mãe era instruída, hoje ela é homenageada, mas ambas as estratégias revelam que a maternidade continua sendo um campo simbólico altamente disputado no universo da comunicação e do consumo.
4.4 Reparação ou adaptação?
Estamos diante de uma forma de reparação simbólica ou apenas de uma adaptação estratégica ao espírito do tempo? O processo de rebranding, embora aparente um alinhamento com valores sociais contemporâneos, dificilmente pode ser considerado suficiente como forma de reconhecimento histórico. Em situações como essa, a publicidade atua não apenas como instrumento de comunicação, mas como mecanismo de apagamento simbólico, reescrevendo a narrativa pública da empresa sem enfrentar suas responsabilidades materiais.
Tal prática escancara uma contradição entre o discurso publicitário e as práticas corporativas, já que a representatividade veiculada nas campanhas nem sempre se traduz em políticas internas consistentes de inclusão, reparação ou justiça social.
Do ponto de vista simbólico, o rebranding oferece à empresa a oportunidade de redefinir suas práticas, valores e identidades percebidas. Como mostra a pesquisa de Victor Vianna Pereira (2024), a Nestlé mobiliza, em sua comunicação institucional, uma imagem fortemente humanizada, centrada em valores como diversidade, sustentabilidade e inclusão.
No entanto, os relatos coletados no site Glassdoor por empregados e ex-empregados da empresa revelam um abismo entre essa narrativa oficial e as vivências concretas. Tal descompasso reforça a hipótese de que o rebranding, por si só, opera mais como adaptação estratégica às demandas contemporâneas do mercado do que como um mecanismo de reparação simbólica ou material.
A responsabilidade simbólica, nesse sentido, parece ser cuidadosamente gerida conforme sugerido por Keller (2006). Tal contradição sugere que essas ações não se sustentam sem o devido acompanhamento de mudanças materiais e estruturais nas práticas da organização. A responsabilidade ética de uma organização, porém, não se esgota no campo da comunicação, e exige o reconhecimento público do passado, o compromisso com a verdade histórica e a construção de práticas coerentes com os valores que afirma defender. Caso contrário, a publicidade continuará operando como uma forma sofisticada de gestão do esquecimento.
5 Considerações Finais
A análise comparativa entre as campanhas publicitárias da Nestlé nas décadas de 1970 e a ação institucional de 2024 revela um movimento significativo de reconfiguração simbólica da marca. O estudo demonstrou que, embora o reposicionamento da marca se apoie em valores socialmente valorizados, como diversidade, empatia e representatividade, essa transformação não necessariamente implica reconhecimento ou reparação histórica das práticas anteriores. A dissociação entre discurso publicitário e práticas corporativas, apontada por análises externas e relatos de funcionários, reforça a compreensão de que muitas dessas mudanças operam no nível estratégico, respondendo às pressões do mercado e ao espírito do tempo, mais do que a compromissos éticos estruturais.
Nesse sentido, a evolução da comunicação da Nestlé pode ser interpretada como parte de um processo de gestão de imagem que visa a manutenção de legitimidade e relevância no espaço público. A construção simbólica, ao deslocar a figura materna de alvo passivo para protagonista afetiva, não apenas reposiciona a marca, mas também redefine a forma como a maternidade é explorada enquanto território simbólico e mercadológico.
Conclui-se, portanto, que a publicidade, especialmente no contexto de grandes corporações, deve ser analisada não apenas como expressão criativa, mas como prática discursiva que molda percepções e influencia memórias coletivas. A reparação ética e material requer, para além da narrativa, ações concretas e transparentes que alinhem comunicação, políticas internas e práticas empresariais, sob pena de perpetuar a lógica de “gestão do esquecimento” que o próprio discurso busca superar.
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