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Você não é livre se não pode parar: o mito da mulher forte

E quando a força se torna uma prisão? A romantização da resiliência feminina.

A sociedade contemporânea frequentemente exalta a imagem da mulher forte, capaz de suportar adversidades, trabalhar, estudar, cuidar da casa, cuidar dos filhos, cozinhar, e estar presente para o marido. Quando a força se torna uma armadura tão pesada que aprisiona, e a resiliência uma expectativa irreal que impede o reconhecimento da dor e da vulnerabilidade, tudo que é naturalmente esperado de uma mulher se transforma em um fardo silencioso.

Se trata de uma idealização que ignora as pressões sociais e culturais que historicamente empurraram as mulheres para papéis de cuidadoras e suportes emocionais, independentemente de suas próprias necessidades. A capacidade de "aguentar firme" se torna, então, menos uma escolha e mais uma imposição, disfarçada de elogio. A romantização da resiliência feminina tenta mascarar a exaustão, o trauma e a invisibilidade de um sofrimento que é esperado, em vez de acolhido. Ela impede que se olhe para as estruturas que tornam essa resiliência necessária em primeiro lugar, perpetuando ciclos de sobrecarga e negligência das próprias necessidades, tornando tudo algo natural.

Acordo antes de todo mundo.
Nem sei se por hábito ou ansiedade.
Gosto da casa em silêncio — é o único momento que parece só meu.

Levanto, ajeito o cabelo, passo um rímel.
Acho que mulher tem que se cuidar, né?
A gente precisa se apresentar bem.
Não é vaidade, é capricho.

Preparo o café, separo o lanche das crianças.
Meu marido dorme mais um pouco — ele trabalha tanto.
Eu também trabalho, claro.
Mas mulher sempre dá conta.
É da gente, esse dom de multiplicar o tempo.

Saio com pressa, mas sorrindo.
Acho feio mulher de cara amarrada.
A gente precisa ser agradável.
Não gosto de mulher muito grossa, que fala alto demais.
Tem que saber se portar.

No caminho, ouço no rádio sobre mais um caso de feminicídio. 

O apresentador diz com naturalidade. Como se fosse só mais uma notícia.

Fecho a mão no volante. Respiro. Sigo.

No trabalho, mantenho tudo em ordem.
Não posso errar, sempre tem um chefe pra encher minha cabeça.
Já ouvi que sou sensível demais, então aprendi a segurar o choro.
Não dá pra ser muito emotiva, mas também não dá pra ser fria.
Tem que saber o tom.

Durante o almoço, olho o celular.
Fulana voltou à forma três meses depois do parto.
Eu admiro. Disciplina é tudo.
Tenho tentado voltar pra academia, mas às vezes a rotina não deixa.
Enfim… quem quer, dá um jeito. Quem sabe fica pro corpo de verão?

Volto pro batente.
Tenho ideias, proponho soluções, conduzo reuniões. Às vezes sou ouvida.

Outras vezes, interrompida.
Mas talvez seja impressão minha.
Às vezes acho que preciso me impor mais.
Mas também não quero parecer autoritária ou grossa.
Equilíbrio.

Fim do expediente.
Pego as crianças da casa da minha mãe, cheios de energia, uma gritaria, brigas.

Passo no mercado, faço o jantar, as crianças fazendo bagunça.

Depois vou arrumar.
Arrumo a cozinha e enquanto coloco a roupa pra lavar, penso que sou grata.

Tenho uma casa, uma família, um emprego.
Tem tanta gente pior, né?
Não posso reclamar.

Durante muito tempo, o saber dominante (definido por homens) caterigorizou a mulher como um "outro" em relação ao homem. Frágil, emocional, submissa, voltada para o cuidado e para o espaço doméstico. Essa imagem foi repetida em discursos filosóficos, na medicina , e nas artes, sempre reforçando a ideia de que havia um papel natural e ideal para o feminino. Essas visões construíram um imaginário coletivo que ainda hoje influencia a forma como mulheres são tratadas na sociedade, até mesmo dentro da comunidade feminina. A mulher é colocada em dicotomias limitantes: santa ou prostituta, racional ou histérica, sensível ou fraca. Papéis pré-definidos que limitam a experiência feminina a rótulos restritos.

Um dos aspectos mais cruéis desse processo é o silenciamento feminino, não apenas a exclusão direta da fala e apagamento dos saberes, mas algo tão cotidiano, que grande maioria já sofreu. Se trata do descrédito das emoções, das opiniões e da autoridade das mulheres. Nos dias atuais, em diversos espaços, ser mulher ainda significa ser interrompida, desacreditada ou rotulada como exagerada e emotiva ao expressar dor ou revolta. Afinal, quantas vezes você, mulher, tentou comunicar algo que te machucou ou incomodou, e isso resultou em uma briga, uma discussão?

Há uma cobrança contraditória que acompanha esse silenciamento: espera-se que a mulher seja sensível, mas que não chore em público; que seja compreensiva, mas nunca firme demais; que seja resiliente, mas sem parecer brava. Quando expressa emoção, pode ser taxada de descontrolada. Quando é racional, fria ou assertiva, é vista como insensível ou até arrogante. Dualidade que aprisiona e sufoca.

A expectativa da mulher forte vem da crença que por natureza são fracas. À primeira vista, ele parece positivo, afinal, valoriza a força feminina e a capacidade de enfrentar dificuldades diárias. Mas essa força desumaniza: a mulher forte não pode desabar, não pode pedir ajuda, não pode ser vulnerável. A força, que deveria ser libertadora, se torna uma prisão. E é justamente essa armadilha emocional e simbólica que a música “Estou Nervosa” (Surface Pressure), do filme Encanto (Disney, 2021), coloca em evidência de forma brilhante.

Eu sou forte

Não vacilo

Qualquer peso pra mim é tranquilo

Vem com tudo

Eu aguento

E ninguém vai negar meu talento

Não questiono se é pesado

O meu corpo suporta o fardo

Se me dão aço, eu piso, eu amasso

Com a força dos braços, eu faço estilhaços, mas

Estou nervosa

E ansiosa na corda bamba sigo cautelosa

Estou nervosa

Como um herói que se cansou numa luta horrorosa

Estou nervosa

Se eu não for generosa me sinto ociosa

Não posso cansar

Não posso falhar

Será que eu vou quebrar

O que me faz quebrar

Pede pra Luisa, ela é mais velha

Tudo que pesar demais vai pra ela

Não sou nada se tirar o meu dom

A pressão

É tanta por aqui que, que já me estressou

Pede pra Luisa, a corpulenta

Não importa o peso, Luisa aguenta

Não sou nada se tirar o meu dom

Eu desmonto

Estou nervosa

Eu fico assim ansiosa

Mas tento fingir ser corajosa

Estou nervosa

Ameaça é raivosa, fatal e silenciosa

Estou nervosa

Eu sei sou orgulhosa e a vida é perigosa

A casa vai cair, preciso agir

Eu uso a minha força, mas não sei como impedir

Que tal mudar o astral

E segurar a expectativa

Eu seria tão mais feliz

E tão mais viva

Mais animada, não tão usada

Ou pressionada, mas falta

Revolta lá no fundo

Pede pra Luisa, que ela brilha

Ela é a mais poderosa da família

Pode até machucar, mas não diz não

A pressão

É tanta por aqui que, que já não sei quem sou,

Quem tem a Luisa não se arrepende

Faça um pedido que ela vai e atende

Não sou nada sem a minha função

Eu sigo então a pressão

Não mata

Na canção, acompanhamos o desabafo de Luísa, a irmã mais velha da família Madrigal. Seu dom mágico é a força física, mas sua letra revela que o verdadeiro peso que ela carrega não está nos blocos de pedra, e sim na pressão constante de nunca poder falhar. Logo no início, Luísa assume a imagem que esperam dela: firme, incansável, imbatível. Ela não se permite questionar se o que carrega é pesado demais, porque "se me dão aço, eu piso, eu amasso". Aqui, há uma crítica sutil mas poderosa: o dom se transforma em obrigação. O reconhecimento vem condicionado ao desempenho. Luísa não se sente amada ou vista por quem é, mas pelo que faz.

Essa canção acaba ressoando com a internalização da ideia de que o valor da mulher está em sua utilidade. Não ser “produtiva”, não ser “forte”, não dar conta, é quase um pecado. E quando a personagem expressa sua angústia, como tantas mulheres na vida real, ela não encontra escuta, dizem apenas “pede pra Luísa, ela dá conta”.

A mulher forte é vista como heroína, mas ninguém se pergunta sobre o preço dessa batalha constante. A ansiedade e a exaustão se tornam companhia diária, mas precisam ser escondidas. A música fala de medo, orgulho, raiva, vontade de explodir, sentimentos comuns a muitas mulheres que foram ensinadas a sempre colocar os outros em primeiro lugar.

Mesmo quando tudo está desmoronando, Luísa sente que é sua responsabilidade manter tudo em pé. Isso reflete como a sociedade espera que as mulheres sustentem famílias, lares, relações e ambientes de trabalho sem reclamar, sem cair, sem parar.

No trecho final, ela diz:

“Eu seria tão mais feliz / E tão mais viva / Mais animada, não tão usada / Ou pressionada”

É aqui que a música toca o centro da ferida: a dor de não ser vista como pessoa, e sim como função. A dor de ser apenas “a que resolve”, “a que suporta”, “a que aguenta”. A dor de não poder ser vulnerável. A dor de se perder de si.

“Estou Nervosa” quando colocada na perspectiva da força feminina, se torna um reflexo da dor de mulheres que vivem entre o esgotamento e a cobrança constante. A letra revela como a expectativa pela força feminina, em vez de libertar, aprisiona. A força deixa de ser escolha e se torna imposição. A mulher forte, quando quebra, não tem para onde correr, porque todos ao redor já se apoiavam nela.

Por Sarah Monteiro