
A gaiola está aberta, porque ela não voa?
Publicado: https://editora.univale.br/blo...
Ao longo da história, as mulheres conquistaram direitos que antes pareciam inimagináveis: o voto, o direito ao trabalho, ao estudo, ao divórcio e o controle sobre o próprio corpo. Mas, ainda hoje, existe uma grande parte de mulheres que se posicionam contra esses mesmos direitos, apoiando legislações que restringem sua autonomia e reforçando discursos que negam sua própria voz. Como explicar esse fenômeno?
A resposta está na maneira em que a realidade social é construída, a percepção coletiva de um grupo, e uma longa história de opressão, na qual continua a moldar a maneira em que cada mulher se percebe e percebe o mundo ao redor. A realidade social consiste em uma percepção coletiva criada por meio da socialização – um processo no qual os indivíduos absorvem, reproduzem e reforçam normas e valores. No caso de mulheres que rejeitam seus próprios direitos, podemos enxergar um processo de socialização profundamente enraizado no patriarcado presente na grande maioria das culturas atuais. Fenômeno que se baseia na aquisição do poder masculino através de funções de liderança e cargos de autoridade, no qual apenas homens têm a oportunidade de adquirir moral e controle.
A Socialização das Mulheres e a Normalização da inferioridade
Os pensadores Berger e Luckmann explicam que a socialização ocorre em duas etapas principais: a primária e a secundária. A socialização primária acontece na infância, quando a criança aprende as estruturas básicas da sociedade. Para muitas meninas, esse aprendizado já vem carregado de mensagens que reforçam um papel passivo: ser delicada, obediente e responsável pelo bem-estar dos outros. Através da moda, dos brinquedos, das histórias infantis, essas mensagens são constantemente reforçadas. Desde cedo, meninas são incentivadas a brincar de bonecas, a imaginar-se como princesas e a valorizar a estética e a obediência, enquanto estímulos para a autonomia e autovalorização são geralmente deixadas de lado.
Já a socialização secundária ocorre ao longo da vida, reforçando e desenvolvendo os conceitos aprendidos durante a socialização primária. Esse processo é o fator determinante do posicionamento do indivíduo na sociedade, é aqui que se aprende fora da sua instituição familiar, entrando em contato com novas perspectivas, valores e expectativas sociais. A escola, a mídia, o trabalho e os grupos sociais nessa fase, se encarregam de consolidar ou desafiar os ensinamentos recebidos na infância.
Nesse contexto, mulheres geralmente encontram normas que reforçam desigualdades de gênero, como a valorização da aparência sobre suas competências ou a limitação de suas aspirações a certos campos profissionais e até mesmo a dúvida sobre suas capacidades físicas e mentais. O acesso à educação superior, o engajamento em movimentos sociais e a inserção em espaços antes dominados por homens, oferecem oportunidades para questionar e reconstruir tais papéis sociais.
Ainda sim, é preciso reconhecer que o conhecimento feminino foi historicamente desvalorizado e apagado. Ao longo dos séculos, a participação das mulheres na produção do saber foi sistematicamente invisibilizada, seja em áreas do conhecimento, histórias, invenções ou próprio impedimento de estudo, tendo suas descobertas apropriadas por homens ou reduzidas ao anonimato. Tal apagamento tem raízes na própria construção social da realidade, que associou o intelecto e a razão ao masculino, enquanto o feminino foi vinculado à intuição e à emoção, processo que também se reflete na maneira como a história em geral é contada
Grandes autoras como Silvia Federici, revelam como a perseguição às mulheres ao longo da história foi um mecanismo de controle. Durante a transição do feudalismo para o capitalismo, mulheres que exerciam autonomia – como curandeiras, parteiras e camponesas que resistiam à exploração – foram acusadas de bruxaria e eliminadas. O objetivo era consolidar uma ordem patriarcal que subordina as mulheres ao trabalho doméstico e à obediência irrestrita. A habilidade de fala feminina foi restrita, e o conhecimento produzido por mulheres foi marginalizado ou apagado. O saber ancestral sobre saúde, reprodução e práticas comunitárias, antes compartilhado entre mulheres, passou a ser controlado.
Tal controle persiste nas sociedades atuais, ainda que com novas roupagens. As mulheres que rejeitam seus próprios direitos não fazem porque são “inimigas de si”, mas porque foram socializadas em uma realidade que naturaliza sua posição inferior.
Uma Jornada Paralela
Enquanto a sociedade avançava em tecnologia, economia e política, mulheres construíram uma evolução paralela, à procura de direitos, liberdade, segurança e representação. No século XIX, enfrentaram resistência para estudar, no século XX, lutaram pelo direito ao voto e ao trabalho, no século XXI ainda enfrentam debates sobre seus direitos reprodutivos, sua presença no mercado de trabalho e violência contra a mulher.
Essa evolução paralela, nunca ocorreu de maneira homogênea. Mulheres negras, indígenas, trans e LBTQIA+ enfrentam ainda desafios em uma luta ainda mais complexa, onde suas representações e vozes foram esquecidas até mesmo pelos próprios movimentos feministas.
Mulheres negras, não apenas lutam pelo direito ao voto e ao trabalho, mas também por sua humanidade em uma sociedade estruturada pelo racismo. Direitos que estão sendo conquistados em um ritmo mais lento, e a desigualdade salarial que ainda reflete essa história de exclusão. Mulheres indígenas enfrentam a luta pela sobrevivência de seus povos e culturas, resistindo ao apagamento histórico e ao avanço de políticas que violam seus territórios. A imposição de padrões coloniais também impactou diretamente suas vivências, deslegitimando seu modo de organização social e restringindo sua participação política. Mulheres trans, por sua vez, travam uma batalha diária para serem reconhecidas como mulheres e terem sua existência validada. A exclusão, a transfobia e a violência ainda as colocam entre os grupos mais vulneráveis da sociedade, com dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, à saúde e até mesmo ao direito à vida.
A evolução feminina nunca foi única nem linear, mas múltipla e cheia de camadas. Enquanto algumas conquistas foram celebradas, muitas mulheres continuaram e continuam à margem dessa história.
A Gaiola Precisa ser Vista para ser Derrubada
As barreiras que restringem a aceitação do feminino não são visíveis à primeira vista. Elas estão nas estruturas sociais, nas normas culturais, nos discursos que se repetem sem questionamento. São as expectativas impostas desde a infância, os obstáculos sutis no mercado de trabalho, a desvalorização do conhecimento feminino e a exclusão de mulheres negras, indígenas, e trans dos espaços de poder. Quando essas barreiras não são reconhecidas, a ilusão de liberdade se instala, e a luta por mudanças parece desnecessária. As notícias diárias de feminicídio, a disparidade salarial, a violência, o apagamento histórico, e a intolerância não deixam dúvidas: a gaiola existe.
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